TEMA 1055 DO STJ
A Extensão da Medida de Indisponibilidade de Bens na Ação de Improbidade Administrativa
A Extensão da Medida de Indisponibilidade de Bens na Ação de Improbidade Administrativa
O Superior Tribunal de Justiça – STJ, no dia 26 de junho de 2020, ao analisar o teor dos debates jurídicos travados no bojo do REsp nº 1.862.797/PR e REsp nº 1.862.792/PR, ambos oriundos do Tribunal de Justiça do Paraná e selecionados por seu respectivo Presidente como representativos de controvérsia, nos moldes do que prevê o art. 1.036, §1º, do Código de Processo Civil, reconheceu que a temática versada nos processos mencionados é, de fato, representativa de controvérsia de natureza repetitiva e, assim sendo, determinou sua afetação, bem como, ordenou a suspensão da tramitação de todos processos que abordem o mesmo assunto.
Trata-se do Tema nº 1.055, no qual cabe ao STJ a análise da seguinte tese:
“[…] definir se é possível – ou não – a inclusão do valor de eventual multa civil na medida de indisponibilidade de bens decretada na ação de improbidade administrativa, inclusive naquelas demandas ajuizadas com esteio na alegada prática de conduta prevista no art. 11 da Lei 8.429/1992, tipificador da ofensa aos princípios nucleares administrativos […]”
Nessa linha, cabe ao STJ aferir se a medida de indisponibilidade deve abranger, também, bens que assegurem o pagamento de eventual multa civil aplicada na possível condenação, ou, em outra hipótese, se a extensão desta constrição deve se limitar ao necessário para assegurar o ressarcimento integral do dano ou na proporção de eventual acréscimo patrimonial ilícito.
Verifica-se, portanto, a relevância da questão abordada, visto que, em apertada síntese, versa sobre a extensão da medida que determina a indisponibilidade dos bens de agente público réu em ação de improbidade administrativa. Esta importância, ainda, se intensifica na medida em que a tese foi submetida ao rito dos Recursos Especiais Repetitivos, de modo que, os efeitos de decisão serão vinculantes aos demais órgãos do Poder Judiciário.
Antes, porém, de adentrarmos no âmago da discussão veiculada no Tema nº 1.055 do STJ, nos cabe, ainda que de forma breve, tecer algumas considerações teóricas, suscitadas a partir de reflexões sobre circunstâncias que, de forma recorrente, circundam as ações que visam tutelar a probidade no exercício de função pública.
Cumpre registrar uma crítica que é suscitada a partir da análise do caso concreto presente no REsp nº 1.186.797/PR. Trata-se, em suma, de ação de improbidade administrativa movida em face de assessor jurídico que ratificou a legalidade de um contrato de compra e venda, mediante parecer opinativo favorável, o qual tinha por objeto um imóvel avaliado em apenas R$ 24.620,00 (vinte e quatro mil seiscentos e vinte reais).
Ocorre que, o assessor jurídico atestou a legalidade do ato a despeito de não terem sido apresentados diversos documentos exigidos pela legislação municipal. Com isso, tendo em vista que o réu apresentou parecer jurídico favorável a realização da compra e venda supramencionada, a ele foi imputada a prática de ato de improbidade nos termos do art. 11, caput e inciso I, da Lei 8.429/92.
Nesse sentido, vale relembrar o teor dos dispositivos imputados ao réu:
“Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atente conta os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições, e notadamente:
I – praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência.“
O que nos chama a atenção é a amplitude semântica do caput do dispositivo transcrito, que configura hipóteses normativas de atos de improbidade e, por conseguinte, passíveis de sanção, haja vista sua ilicitude ser altamente reprovável pelo sistema normativo, de modo que, a crítica que nos parece cabível ao dispositivo legal é sua ausência de tipicidade.
Ora, sabe-se que as hipóteses normativas de normas incriminadoras, sancionatórias e punitivas no geral, devem discriminar com rigor e precisão os fatos jurídicos que, caso verificados no plano concreto, ensejam aplicação de sanção, isto é, a hipótese da norma deve especificar, com a maior exatidão possível, a conduta humana reprovada pelo ordenamento jurídico, bem como, prever uma respectiva sanção caso esta ação ou omissão transgressora venha a se realizar no plano fático.
Segue-se daí a necessidade de se observar o princípio da tipicidade nas hipóteses de improbidade administrativa, sobretudo com o escopo de evitar interpretações ampliativas em normas restritivas de direitos e, igualmente, ratificar que normas restritivas de direitos devem ser interpretadas restritivamente, sob pena de gravame à ordem constitucional e à segurança jurídica.[1]
Sendo assim, à luz dessas considerações, é que nos cabe criticar o texto normativo do art. 11, caput, da Lei nº 8.429/92, o qual trata de condutas violadoras dos princípios informadores da Administração Pública.
A importância dos princípios é inegável, são os verdadeiros alicerces do sistema normativo, conferindo ao ordenamento um caráter sistemático e coerência axiológica, posto que os princípios são, enfim, os mandamentos nucleares do sistema, na feliz lição de Celso Antônio Bandeira de Mello.[2]
Igualmente, inegável é a abrangência semântica dos princípios, o que, aliás, é uma característica própria destas normas[3] e, esta abrangência, apresenta grande importância para a interpretação do Direito, possibilitando a ressignificação do sentido e alcance das outras normas do ordenamento jurídico, de modo que, não é uma característica, por si só, negativa.
De todo modo, atribuir a violação dos princípios constitucionais da Administração Pública a qualidade de antecedente de uma norma jurídica sancionadora, como é o caso do dispositivo supracitado, não nos parece adequado nem razoável, justamente por causa da multiplicidade indefinida de condutas que podem violar, em alguma medida, os princípios jurídicos, de tal maneira que as ações ou omissões passíveis de sanção se tornam indefinidas, na contramão da tipicidade e segurança jurídica requeridas em semelhantes casos, conforme exposto.
Nesse sentido, por mais que os incisos do art. 11 da Lei nº 8.429/92 especifiquem com maior precisão os atos de improbidade violadores dos princípios do regime jurídico administrativo, registramos nossa ressalva quanto as imputações fundadas tão somente no caput do artigo supramencionado e, cuja subsunção normativa é solapada aos seus respectivos incisos nos processos judiciais, por serem excessivamente etéreos e holísticos.
Superadas essas questões que, a despeito de não serem alvo de apreciação pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Tema nº 1.055, circundam as ações de improbidade administrativa e que, como destacamos, apresentam pontos controversos de notável relevância, dignos, inclusive, de estudos posteriores mais aprofundados, passamos, finalmente, ao cerne do debate: a extensão da medida que decreta a indisponibilidade dos bens em ação de improbidade administrativa.
Por apreço à lógica e coerência do raciocínio, nos cabe, primeiramente, fixar as bases normativas que fundamentam o debate acerca da indisponibilidade de bens do agente público ímprobo, para, em seguida, analisar o entendimento jurisprudencial a respeito do tema e, enfim, após firmadas essas premissas, tecer uma conclusão crítica.
A Constituição da República, precisamente no art. 37, §4º, prevê que a prática de ato de improbidade administrativa é passível de acarretar a indisponibilidade dos bens do agente público responsável pela edição do ato e, segue-se daí, o fundamento de validade do art. 7º, da Lei nº 8.492/92, de seguinte teor:
“Art. 7º. Quando o ato de improbidade causar lesão ao patrimônio público ou ensejar enriquecimento ilícito, caberá a autoridade administrativa responsável pelo inquérito representar ao Ministério Público, para a indisponibilidade dos bens do indiciado.
Parágrafo único. A indisponibilidade a que se refere o caput deste artigo recairá sobre bens que assegurem o integral ressarcimento do dano, ou sobre o acréscimo patrimonial resultante do enriquecimento.”
Nesse sentido, a partir de uma leitura literal e teleológica do texto normativo supratranscrito, inferimos que a medida de indisponibilidade dos bens é cabível, exclusivamente, nos casos em que o ato de improbidade ocasione lesão ao erário público ou provoque enriquecimento ilícito, com o escopo de impedir que o agente público réu na ação de improbidade venha a se despir de seus bens e, por conseguinte, impossibilite o efetivo ressarcimento ao erário.
Vale mencionar, ainda, que são apenas estas as hipóteses normativas capazes de ensejar a consequência prevista de indisponibilidade de bens, de modo que, ao nosso juízo, não há que se falar na aplicação dessa medida se inexistente dano ao erário ou enriquecimento ilícito do agente, como é o caso, puro e simples, das hipóteses estipuladas nos incisos do art. 11, da Lei nº 8.429/92.
E, ratifique-se, a conduta deve ser obrigatoriamente dolosa, ou seja, eivada de má-fé, malícia e ânimo contundente de praticar as hipóteses discriminadas nos incisos do artigo supracitado, cuja evidência probatória, para decretação de indisponibilidade de bens em caráter liminar, seja convincente e além de qualquer dúvida razoável, de forma que, a título exemplificativo, o agente que nega, dolosa e comprovadamente, publicidade aos atos oficiais (art. 11, inciso IV), sem que isso, contudo, lhe proporcione qualquer enriquecimento ilícito, tampouco lesão ao erário público, não deve ser apenado com a referida medida.
Além disso, no que tange a norma jurídica extraída a partir do texto normativo do parágrafo único do dispositivo mencionado, verifica-se, pelo menos prima facie, que a constrição deve possuir a extensão necessária para assegurar “o integral ressarcimento do dano, ou sobre o acréscimo patrimonial resultante do enriquecimento ilícito”, de tal sorte que a indisponibilidade se limita ao aspecto reparatório da ação de improbidade, isto é, se restringe a indispor apenas os bens que tornem efetivo o ressarcimento do dano ou o montanteproporcional ao acréscimo patrimonial supostamente ilícito.
Não parece, portanto, que a medida seja passível de extensão para fora destes limites e, assim, indisponibilize bens que venham a assegurar o eventual pagamento de multa civil, já que esta, diferentemente daquelas medidas, possui nítida índole sancionatória.
Contudo, não tem sido esse o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, bem como, de outros Tribunais que, na toada do entendimento do STJ, corroboram que a medida de indisponibilidade dos bens pode abranger, também, bens que assegurem o pagamento de eventual multa civil, sanção que pode ser imputada caso o réu venha a ser condenado.[4]
Não obstante a pacífica jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça a respeito do tema, nenhuma dessas decisões foi proferida em caráter vinculante, de forma que os órgãos do Poder Judiciário não estão obrigados a observar o entendimento do STJ, muito embora, majoritariamente, o façam.
É possível encontrar decisões, especialmente prolatadas pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná[5] e, também, por algumas Câmaras do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo[6], que vertem entendimento de que a medida de indisponibilidade dos bens não deve ser interpretada de forma ampliativa, de modo que, não deve abranger bens que assegurem eventual pagamento de multa civil.
Verifica-se, portanto, que há uma divergência jurisprudencial a respeito do tema, não obstante haja maior número de decisões em harmonia com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, de maneira que o julgamento do Tema nº 1.055 se revela de enorme importância, sobretudo para que seja fixada, de uma vez todas, uma tese que sirva de bússola para os órgãos do Poder Judiciário e, com efeito, seja observada a segurança jurídica dos jurisdicionados.
No mesmo passo, é de extrema relevância que seja prolatada uma decisão que melhor se coadune e observe, na maior medida do possível, os valores positivados no ordenamento pátrio, o quê, significa dizer, tendo em conta que a tese firmada irá adquirir caráter vinculante, torna-se indispensável que o órgão julgador se debruce sobre o tema com o intuito de buscar, na medida do possível, a ponderação que melhor equilibre os valores positivados no ordenamento jurídico para solução do caso.
Nesta toada, nos cumpre expor, com infindável respeito aos entendimentos contrários, a interpretação que nos parece mais adequada para a resolução da problemática versada no bojo do Tema nº 1.055, porquanto, não parece que o entendimento atual do STJ sobre a extensão da medida de indisponibilidade de bens em caráter liminar que resguarde o montante equivalente à multa civil que pode ser aplicada, seja fruto da melhor interpretação.
Não se olvide que a medida de indisponibilidade dos bens, por mais que possua nobre finalidade, importa grave restrição ao direito de propriedade, visto que a disposição do bem, conforme o art. 1.228, caput, do Código Civil, é um atributo do direito de propriedade.
Este, como sabido, é de altiplano constitucional (art. 5º, inciso XXII, da Constituição), caracterizando-se como direito fundamental individual (de índole negativa, portanto) e que floresceu de um processo histórico de luta pelas liberdades individuais em detrimento do arbítrio do poder político do Estado.[7]
O direito de propriedade, inclusive, foi previsto no art. 2º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789[8], ou seja, percebe-se que o direito de propriedade nasceu juntamente com o aparecimento do Estado de Direito, modelo de Estado em que o poder político, finalmente, deixou de ser ilimitado, disso decorre que o direito de propriedade é um dos alicerces do modelo de Estado mencionado e compõe, igualmente, o patrimônio cultural da civilização ocidental.
Nestes termos, o que se pretende ressaltar é a extrema importância do direito de propriedade, de relevância, como destacamos, histórica e cultural, assim sendo, por mais que, evidentemente, não seja um direito absoluto[9], é imprescindível que o direito de propriedade seja observado e respeitado na maior medida do possível, sendo sua restrição legítima tão somente para a implementação de outros valores jurídicos que se sobreponham à luz de determinadas situações concretas e bem delimitadas.
Portanto, não se deve dar à norma do art. 5º, inciso XXII, uma interpretação reducionista e, outrossim, não há que se interpretar de forma ampliativa normas restritivas do direito de propriedade, conforme o quanto já exposto, isto é, o que não deve ocorrer, aliás, em qualquer norma restritiva de direitos, mormente aqueles considerados fundamentais.
É que a norma constitucional supramencionada, justamente por se referir a um direito fundamental individual, clama por uma interpretação que lhe atribua o máximo de efetividade, em conformidade do que o ilustre Professor José Joaquim Gomes Canotilho denomina de princípio da máxima efetividade[10] e que Celso Ribeiro Bastos, por seu turno, chamou de postulado da maior efetividade possível.[11]
Orientados a partir desses preceitos constitucionais, portanto, é que devemos realizar o exercício hermenêutico, isto é, delimitar o sentido e alcance, da norma prevista no art. 7º, da Lei nº 8.429/92.
Como afirmado anteriormente, a indisponibilidade dos bens, por si só, não é inconstitucional, pois, apesar de restringir o direito de propriedade, o faz a título de tornar efetivo o ressarcimento ao erário público, bem como, a reparação dos efeitos nocivos causados pelo ato de improbidade administrativa, no entanto, é indispensável ressaltar que se trata de medida de extrema restrição ao direito de propriedade, capaz, inclusive, de ensejar a morte civil do agente que perde a disponibilidade de seus bens.[12]
Nos parece evidente, e diante do potencial julgamento do Tema 1055 do STJ, portanto, de controvérsia repetitiva no âmbito dos tribunais pátrios, parece-nos cada vez mais necessário ratificar o óbvio, isto é, que o dispositivo que prevê o cabimento da decretação de indisponibilidade dos bens, mormente em caráter liminar, não deve ser interpretado de maneira extensiva, sob pena de esvaziar de sentido os mandamentos e diretrizes constitucionais materializados na Carta Magna e, por consequência, mutilar a essência normativa da própria Lei de Improbidade Administrativa.
Sendo assim, entendemos que a extensão da medida de indisponibilidade dos bens deve estar adstrita ao necessário para assegurar, exclusivamente, a reparação do dano causado pelo ato de improbidade ou na proporção de eventual enriquecimento indevido, na exata literalidade do que dispõe o art. 7º da Lei nº 8.429/1992, portanto, a indisponibilidade dos bens deve recair apenas sobre os valores que perfazem montante de caráter indenizatório, reparatório e do necessário ressarcimento, da ação de improbidade administrativa.
Não há que se falar, nesse sentido, em extensão ao quantum necessário para assegurar o eventual pagamento de multa civil, visto que esta medida possui eminente caráter sancionatório e punitivo, aliás, fazê-lo, implica em manifesta decisão ilegal, haja vista a ausência de previsão normativa para tal, porquanto, seria interpretar o art. 7º de forma abrangente.
Além disso, é importante relembrar que a decretação de indisponibilidade dos bens é feita a partir de uma análise sumária dos autos, em caráter liminar, sem que o ato de improbidade tenha sido devidamente comprovado, em detrimento do devido processo legal, tampouco após o exercício pleno do contraditório e da ampla defesa, como exige a Constituição Federal em seu art. 5º, incisos LIV e LV.
Consequentemente e, de novo, o óbvio se faz necessário enunciar: é um disparate que a indisponibilidade dos bens abranja o valor de eventual multa civil, haja vista seu caráter sancionatório, repreensivo e punitivo, pois decretada em um momento processual em que os autos não foram apreciados de forma exaustiva e não houve, igualmente, o exercício pleno do direito de defesa.
Entender pelo cabimento da abrangência do valor da multa civil é aplicar uma penalidade, ainda que de maneira não definitiva, sem que tenha sido ofertada ao réu a oportunidade de se socorrer de todos os meios de defesa inerentes ao devido processo legal e, ademais, é aplicar uma medida sancionatória antes que a decisão se torne definitiva, o quê, salvo melhor juízo, viola o princípio da presunção de inocência (art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal).[13]–[14]
Outro ponto que deve ser considerado em favor de uma interpretação restritiva da medida de indisponibilidade dos bens é a morosidade do Poder Judiciário.
Os motivos para que isto ocorra são variáveis e, muitos deles, compreensíveis, no entanto, estão em dissonância com o preceito da razoável duração do processo (art. 5º, inciso LXXVIII, da Lei Fundamental), uma vez que os processos de improbidade administrativa podem durar um longo período de tempo, no qual o réu se vê impossibilitado de dispor de seus bens.
Ora, é imensurável a perturbação suportada por aqueles indivíduos que aturam por anos as graves consequências acarretadas pela indisponibilidade de seus bens, transformando o processo judicial, que deveria ser um meio hábil para apurar a responsabilidade do agente, em uma verdadeira fonte de perturbação na vida social do indivíduo, e esta consequência negativa, em demasia, é gerada pela morosidade do Poder Judiciário na atualidade.
Segue-se daí o absurdo: o cidadão é obrigado a suportar efeitos excessivamente danosos a sua vida em decorrência da morosidade na tutela jurisdicional. Em termos não formais: quem paga o preço pela lentidão do órgão judicial é, infelizmente, o jurisdicionado.[15]
Ao considerarmos esse último ponto exposto, não devemos nos olvidar das lições de Carlos Ayres Britto, que nos ensina que o Direito deve ser interpretado com sensibilidade às situações concretas, ao que adicionaríamos, no caso temático em apreço, contrapõe-se à sanção liminar decorrente de norma abstrata, a exemplo daquelas imputadas a partir do caput do art. 11º da Lei de Improbidade Administrativa, vale dizer, o Direito não deve interpretado apenas a partir da razão, abstração e da inteligibilidade, visto que deve se pautar, ao mesmo tempo, no sentimento, na concretude e na afetividade, sendo na conjunção entre pensamento e sentimento, entre racionalidade e sensibilidade, que encontramos a interpretação mais adequada à norma e aos preceitos jurídicos.[16]
Por último, vale mencionar que, ao cabo da instrução processual, caso o magistrado reconheça a prática do ato de improbidade administrativa, bem como, pela responsabilização do réu, ele não está obrigado a aplicar a sanção de multa civil, isso porque, o magistrado, ao analisar as circunstâncias do caso concreto, sendo o caso de condenação – por óbvio – deverá ponderar quais são as sanções mais adequadas ao caso em que lhe é submetido, as quais se encontram previstas no art. 12 da referida Lei de Improbidade, e, assim, aplicá-las.
Não há lógica em requerer que a medida de indisponibilidade dos bens se estenda para garantir o pagamento de multa civil, o que é feito no início do processo em caráter liminar, sendo que, além do réu ainda não ser considerado responsável pelo ato de improbidade a ele imputado, não se sabe, na hipótese de ser condenado, se será ou não, aplicada a sanção de multa civil.
Ora, não é razoável agravar o estado de restrição do direito de propriedade de réus em ações de improbidade administrativa, sob o fundamento de assegurar o pagamento de multa civil, sendo que, na verdade, não é certo que ao cabo do processo o agente público será responsabilizado, tampouco se será condenado ao pagamento de multa civil – outra vez o óbvio se faz sentir – restringe-se a propriedade do agente público para assegurar o pagamento de uma multa que pode não ser aplicada, quiçá, sequer será caracterizada improbidade administrativa, senão apenas ilícito administrativo ou nem isso.
Considerando as questões demonstradas, é patente a conclusão de que o art. 7º da Lei 8.429/92 deve ser interpretado de forma rigorosamente restritiva, de modo não ser cabível abarcar naquele texto normativo a possibilidade da decretação de indisponibilidade dos bens ser estendida aos aspectos sancionatórios da ação de improbidade administrativa.
Em leigas palavras, em conformidade com o jargão popular, corolário do óbvio ululante que deveria ressoar à razão e sensibilidade dos excelsos pretores, implica afirmar que não se deve “atirar primeiro e perguntar depois”, ou seja, não se deve sancionar primeiro, para julgar a posteriori, visto tratar-se a espécie de sanção pretérita ao devido processo legal, contraditório e a ampla defesa, que se agrava com a morosidade decorrente da sobrecarga de demandas nos Tribunais.
De todo modo, por mais que seja impossível prever para qual direção o STJ penderá no julgamento do Tema nº 1.055, é provável que a jurisprudência, pacífica neste Tribunal, inclusive, seja mantida, tendo em vista que esta Corte ostenta recentes julgados considerando o cabimento da inclusão do valor da multa civil na medida de indisponibilidade e, uma vez fixada a tese em sede de Recursos Repetitivos, o entendimento passará a vincular os aplicadores do Direito, malgrado, objetiva e subjetivamente, discordem da decisão.
Aliás, é de suma importância que a decisão seja observada, afinal, se trata de uma competência democraticamente outorgada ao Superior Tribunal de Justiça, órgão competente para tanto. Sendo a competência jurisdicional exercida dentro de seus limites jurídicos, ela deverá ser acatada.
Tarefa diferente, no entanto, incumbe aos estudiosos do Direito, posto que lhes cabe a árdua e notável missão de, caso entendam pela inadequação da decisão prolatada, criticá-la, com o escopo de levantar argumentos ignorados pelos órgãos do Poder Judiciário e, deste modo, suscitar novas reflexões, capazes de transformar até mesmo o entendimento mais pacífico.
Afinal, já dizia o dramaturgo Bertolt Brecht: “pensar significa transformar”[17], é isto que cabe aos estudiosos do Direito: manter a chama do pensamento crítico sempre acesa, em prol da transformação, evolução e aprimoramento das instituições públicas e dos institutos jurídicos.
Aos aplicadores do Direito, por sua vez, cabe o dever de permanecerem sensíveis a novas propostas, bem como, a obrigação de considerar todos os pontos de vista que circundam determinado objeto de estudo, visto que, como disse o insuperável John Stuart Mill, “(…) o único caminho pelo qual um ser humano pode se aproximar do conhecimento total de uma questão é ouvindo o que pode ser dito sobre ela por pessoas que têm uma variedade de opiniões, e estudando todos os ângulos dos quais pode ser encarada por cada caráter ou tipo de mentalidade.”[18]
Autor: Vinícius Pollarini Marques de Souza, advogado, especialista em Direito Tributário pela FGV/SP, com expertise em contencioso e consultivo tributário, administrativo e empresarial.
Autor: Pedro Dadalto Oliveira, bacharelando em Direito pela PUC/SP, estagiário e membro da Equipe IDITA, foco em pesquisa acadêmica e jurisprudencial, experiência em Direito Administrativo e Tributário.
BIBLIOGRAFIA:
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 28ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 3ª ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
BRECHT, Bertolt. Histórias do sr. Keuner. São Paulo: Editora 34, 2013.
BRITTO, Carlos Ayres. O humanismo como categoria constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Edições Almedina, 2004.
GUSSILO, Felipe Kelin. Prazo para sentença e liberação de bens em ações de improbidade. Revista Consultor Jurídico. São Paulo, set. 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-set-27/opiniao-prazo-liberacao-bens-acoes-improbidade. Acesso em: 29/04/2021.
MILL, John Stuart. Sobre a liberdade e A sujeição das mulheres. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2017.
RIZZARDO, Arnaldo. Ação civil pública e ação de improbidade administrativa. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
ZAVASKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. Tese (Doutorado em Direito). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.
[1] Foge da finalidade do presente estudo a análise acerca da natureza jurídica da Lei de Improbidade Administrativa e de suas respectivas sanções. Seguimos o entendimento, no entanto, de que, inobstante o fato de que a mencionada Lei não ostente uma natureza exclusivamente penal, é certo que ela sofre forte influência do regime jurídico de Direito Penal e Processual Penal, haja vista a semelhança material entre as sanções estipuladas no Código Penal e as positivadas no art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa. Deste modo, os princípios e regras inerentes ao regime jurídico das disciplinas penais devem ser importados ao se interpretar as disposições previstas na Lei nº 8.429/92. Por todos: ZAVASKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. Tese (Doutorado em Direito). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005, p. 95-98.
[2] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 28ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 54.
[3] Conforme os adequados termos de Celso Ribeiro Bastos: “Pode-se afirmar que os princípios, embora percam em concretitude, ganham em abrangência.” BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 3ª ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002, p. 118,
[4] Conforme os termos do próprio STJ: “O Superior Tribunal de Justiça, ao interpretar o art. 7º da Lei nº 8.429/92, tem decidido que, por ser medida de caráter assecuratório, a decretação de indisponibilidade de bens, ainda que adquiridos anteriormente à prática do suposta ato de improbidade, deve incidir sobre quantos bens se façam necessários ao integral ressarcimento do dano, levando-se em conta, ainda, o potencial valor de multa civil.” (STJ; AgRg no REsp nº 1.260.737/RJ; Órgão julgador: Primeira Turma; Rel. Min. Sérgio Kukina; DJe: 20/11/2014). Inclusive, o mesmo entendimento se verifica em decisões mais recentes do Superior Tribunal de Justiça, como: i) STJ; REsp nº 1.833.029/SP; Órgão julgador: Segunda Turma; Rel. Min. Herman Benjamin; DJe: 07/11/2019; e ii) STJ; AgInt no REsp nº 1.859.574/PR; Órgão julgador: Segunda Turma; Rel. Min. Mauro Campbell Marques; DJe: 24/08/2020. No mesmo sentido é possível encontrar diversas decisões prolatadas por parcela das Câmaras de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo: i) TJSP; Agravo de Instrumento nº 2222396-94.2016.8.26.0000; Órgão julgador: 4ª Câmara de Direito Público; Rel. Des. Paulo Barcellos Gatti; DJe: 08/05/2017; ii) TJSP; Agravo de Instrumento nº 2030270-41.2021.8.26.0000; Órgão julgador: 6ª Câmara de Direito Público; Rel. Des. Evaristo dos Santos; DJe: 08/04/2021; iii) TJSP; Agravo de Instrumento nº 2012951-60.2021.8.26.0000; Órgão julgador: 7ª Câmara de Direito Público; Rel. Des. Coimbra Schmidt; DJe: 09/03/2021; e iii) TJSP; Agravo de Instrumento nº 2251731-22.2020.8.26.0000; Órgão julgador: 3ª Câmara de Direito Público; Rel. Des. Paola Lorena; DJe: 22/03/2021.
[5] Nessa linha: i) TJPR; Agravo de Instrumento nº 0006894-44.2018.16.0000; Órgão julgador: 5ª Câmara Cível; Rel. Des. Anderson Ricardo Fogaça; DJe: 12/03/2019; e ii) TJPR; Embargos de Declaração nº 0035502-86.2017.8.16.0000; Órgão julgador: 4ª Câmara Cível; Rel. Des. Astrid Maranhão de Carvalho Ruthes; DJe: 16/06/2019.
[6] Nesse sentido: i) TJSP; Agravo de Instrumento nº 2021974-64.2020.8.26.0000; Órgão julgador: 11ª Câmara de Direito Público; Rel. Des. Aroldo Viotti; DJe: 12/04/2021; ii) TJSP; Agravo de Instrumento nº 2246768-39.2018.8.26.0000; Órgão julgador: 10ª Câmara de Direito Público; Rel. Des. Marcelo Semer; DJe: 17/06/2019; iii) TJSP; Agravo de instrumento nº 2067024-16.2020.8.26.0000; Órgão julgador: 1ª Câmara de Direito Público; Rel. Des. Marcos Pimentel Tamassia; DJe: 15/01/2021; e iv) TJSP; Agravo de instrumento nº 2285684-74.2020.8.26.0000; Órgão julgador: 10ª Câmara de Direito Público; Rel. Des. Antônio Carlos Villen; DJe; 02/03/2021.
[7] É que os direitos fundamentais são, no fundo, direitos históricos, como nos ensina Norberto Bobbio: “Do ponto de vista teórico, sempre defendi – e continuo a defender, fortalecido por novos argumentos – que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.” BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 5.
[8] “Art. 2º. O fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.”
[9] A propósito, Bobbio nos lembra que inexistem direitos absolutos: Idem, p. 171.
[10] Neste ponto, vale transcrever os ensinamentos do mestre português: “Este princípio, também designado por princípio da eficiência ou princípio da interpretação efectiva, pode ser formulado da seguinte maneira: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora sua origem esteja ligada à tese da actualidade das normas constitucionais programáticas (Thoma), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais).” CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Edições Almedina, 2004, p. 1224.
[11] BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional, op. cit., p. 175-177.
[12] Nesse sentido, vale observar as ponderações feitas por Arnaldo Rizzardo: “Não se pode olvidar que o bloqueio das contas bancárias e a indisponibilização dos bens de raiz e móveis são medidas de exceção, representando, às vezes, verdadeira morte civil do cidadão quando abrange a totalidade do patrimônio, e como tal precisa ser vista e entendida. A regra é a livre disposição do patrimônio, prerrogativa que, a teor do art. 1.228 do Código Civil, integra o direito de propriedade, assegurado pela Constituição Federal no seu art. 5º, inciso XXII. Como toda exceção, só pode ser imposta em condições que amplamente a justifiquem, evitando-se o automatismo, sob pena de se estar a violentar a lei e a própria Carta Magna.” RIZZARDO, Arnaldo. Ação civil pública e ação de improbidade administrativa. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 420
[13] Em abono ao exposto, vale observar o destacado pela 11ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo: “Multa civil é sanção, penalidade aplicável a quem for condenado por ato de improbidade administrativa após o devido procedimento legal. Nada tem a ver com o ressarcimento do dano, tampouco com apontado acréscimo patrimonial do agente. Não há supedâneo legal para que o bloqueio atinja valor de multa civil, cujas imposição e quantificação, aliás, supõem observância do contraditório e da ampla defesa, nenhuma justificativa emergindo para que sobrevenha antecipado e inoficioso cumprimento de pena sem a observância daquelas elementares garantias.” TJSP; Agravo de Instrumento nº 2021975-64.2020.8.26.0000; Órgão julgador: 11ª Câmara de Direito Público; Rel. Des. Aroldo Viotti; DJe: 15/04/2021. Na mesma linha: TJPR; Agravo de Instrumento nº 0014456-74.2020.8.16.0000; Órgão julgador: 5ª Câmara Cível; Rel. Des. Carlos Mansur Arida; DJe: 17/07/2021.
[14] Vale registrar que não desconhecemos a possibilidade de aplicação do princípio do in dubiu pro societate, bem como o a suficiência do dolo eventual para a instauração da ação de improbidade administrativa. Estas noções, contudo, são aplicáveis no momento em que o Judiciário se debruça sobre o prosseguimento, ou não, da ação de improbidade, de modo que, uma vez iniciada a fase judicial deste processo, ele passa a ser regido por outros princípios e regras, os quais importam noções próprias do Direito Penal e Processual Penal, dando azo, assim, a aplicação do princípio da presunção de inocência, da tipicidade e etc.
[15] A propósito do tema, cabe ressaltar os termos de Felipe Klein Gussoli que, pautado nas lições de Eduardo Chemale Selistre Penã, assinala que: “A demora natural no processamento indisponibilizados está sempre acompanhada do travamento da circulação patrimonial dos acusados. Quando pessoas jurídicas, enfrentam não raro por anos entraves nos seus negócios, com dificuldades de obtenção de crédito, pagamento de folha salarial e dívidas. Quando pessoas físicas, no mínimo têm a vida financeira parada, saldo bancário esvaziado, dependência de familiares e amigos para pagar contas simples. Num caso e no outro, a ansiedade acompanha os réus dependentes de uma Justiça lenta. Não se pode negar que certa demora é ínsita a qualquer processo, mas apesar disso ‘não parece em consonância com os princípios constitucionais do processo imputar os ônus da demora do trâmite processual, geralmente responsabilidade exclusiva do Estado, ao demandado’”. GUSSILO, Felipe Kelin. Prazo para sentença e liberação de bens em ações de improbidade. Revista Consultor Jurídico. São Paulo, set. 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-set-27/opiniao-prazo-liberacao-bens-acoes-improbidade. Acesso em: 29/04/2021.
[16] BRITTO, Carlos Ayres. O humanismo como categoria constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 71-85.
[17] BRECHT, Bertolt. Histórias do sr. Keuner. São Paulo: Editora 34, 2013, p. 70.
[18] MILL, John Stuart. Sobre a liberdade e A sujeição das mulheres. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2017, p. 95-96.